terça-feira, 5 de maio de 2015

João Calvino


A TEOLOGIA DE JOÃO CALVINO

Alderi Souza de Matos

As concepções teológicas do reformador João Calvino (1509-1564) estão contidas na sua vasta obra, especialmente em seu opus magnum, a Instituição da Religião Cristã ouInstitutas.

1. AS INSTITUTAS

No prefácio da 1ª Edição das Institutas (1536), Calvino afirmou o seguinte:

“Pretendi apenas fornecer algum ensino elementar através do qual qualquer pessoa que tenha sido tocada por um interesse na religião pudesse ser educada na verdadeira piedade. E fui especialmente diligente nessa obra por causa do nosso próprio povo da França. Vi muitos deles com fome e sede de Cristo, mas muito poucos imbuídos com até mesmo um pequeno conhecimento dele. Que é isto que propus, o próprio livro testifica através de sua forma de ensino simples e até mesmo rudimentar”.

Essa primeira edição tinha apenas seis capítulos, que tratavam dos seguintes temas: (1) A lei: exposição do Decálogo; (2) A fé: exposição do Credo dos Apóstolos; (3) A oração: exposição da Oração Dominical; (4) Os sacramentos; (5) Os cinco falsos sacramentos; (6) A liberdade cristã, o poder eclesiástico e a administração política.

Na 2ª edição das Institutas (1539), o reformador passou a ter outro objetivo em mente:

“Minha intenção nesta obra foi preparar e treinar de tal modo na leitura da Palavra Divina os aspirantes à teologia sagrada que eles possam ter fácil acesso à mesma e depois nela prossigam sem tropeçar. Pois penso que abrangi de tal maneira a suma da religião em todas as suas partes, dispondo-a em ordem, que todos os que a assimilarem corretamente não terão dificuldade em determinar tanto o que devemos buscar de modo especial nas Escrituras quanto para que objetivo devem direcionar tudo o que está contido nas Escrituras”.

2. CATEGORIAS DE ESCRITOS

As concepções teológicas de Calvino encontram-se em seis categorias de escritos:

2.1. As Institutas: Calvino produziu ao todo oito edições do texto latino (1536-1559) e cinco traduções para o francês. A 1ª edição tinha apenas seis capítulos; a última totalizou oitenta. Equivale em tamanho ao Antigo Testamento mais os Evangelhos sinóticos e segue o padrão geral do Credo dos Apóstolos. Visava ser um guia para o estudo das Escrituras.
Livro I: O Conhecimento de Deus, o Criador: o duplo conhecimento de Deus, as Escrituras, a Trindade, a criação e a providência.
Livro II: O Conhecimento de Deus, o Redentor: a queda e a corrupção humana, a Lei, o Antigo e o Novo Testamento, Cristo o Mediador – sua pessoa (profeta, sacerdote, rei) e sua obra  (expiação).<//span>
Livro III: A Maneira Como Recebemos a Graça de Cristo, Seus Benefícios e Efeitos: fé e regeneração, arrependimento, vida cristã, justificação, predestinação, ressurreição final.
Livro IV: Os Meios Externos Pelos Quais Deus nos Convida Para a Sociedade de Cristo: a igreja, os sacramentos, o governo civil.

2.2. Comentários: são um complemento das Institutas. Calvino escreveu comentários de todos os livros do Novo Testamento, exceto 2 e 3 João e Apocalipse, e sobre o Pentateuco, Josué, Salmos e Isaías.

2.3. Sermões: Calvino expunha sistematicamente os livros da Bíblia. Ele costumava pregar sobre o Novo Testamento aos domingos e sobre o Velho Testamento durante a semana. Seus sermões eram anotados taquigraficamente por um grupo de leais refugiados franceses. A série Corpus Reformatorum contém 872 sermões de Calvino.

2.4. Folhetos e tratados: temas apologéticos (contra católicos e anabatistas) e gerais.

2.5. Cartas: escritas a outros reformadores, soberanos, igrejas perseguidas e protestantes encarcerados, pastores, colportores.

2.6. Escritos litúrgicos e catequéticos: confissão de fé, catecismo, saltério.

3. A PERSPECTIVA TEOLÓGICA DE CALVINO

3.1. O conhecimento de Deus

        A verdadeira sabedoria consiste de dois elementos: o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos. Daí a importância da revelação. Não podemos conhecer a Deus em sua essência, mas somente na medida em que ele se dá a conhecer a nós.
        Existe um duplo conhecimento de Deus: como criador e como redentor. Todo ser humano é essencialmente uma criatura religiosa, tendo em si a “semente da religião”. Deus se revela não só através desse senso inato de si mesmo, mas também através das maravilhas da criação.
        Esse conhecimento de Deus revelado na natureza exige uma resposta humana, seja de piedade ou idolatria. O fim último da piedade não é a salvação individual, mas a glória de Deus.

3.2. A condição humana
        O pecado torna a revelação natural totalmente insuficiente para o correto conhecimento de Deus. Ela tem somente uma função negativa – deixar os seres humanos inescusáveis por sua idolatria. O ser humano encontra-se perdido como que em um labirinto. A imagem de Deus ainda permanece nele, mas foi totalmente distorcida e desfigurada.

3.3. O Deus que se revela
        Todo verdadeiro conhecimento de Deus decorre do fato de que Deus, em sua misericórdia, houve por bem revelar-se. Calvino usa aqui o conceito de “acomodação” ou adaptação. Deus desce ao nosso nível, adapta-se à nossa capacidade. Vemos isso na encarnação, nas Escrituras, nos sacramentos e na pregação.
        Nas Escrituras, Deus balbucia a nós, fala-nos como uma ama fala a um bebê. Outra figura: a Bíblia é como óculos divinos para os que são espiritualmente míopes. Assim, a verdadeira teologia é uma reverente reflexão sobre a revelação escrita de Deus; não deve, pois, perder-se em “vãs especulações”, mas ater-se às Escrituras.

3.4. A doutrina das Escrituras
        A Bíblia é a Palavra de Deus inspirada, revelada em linguagem humana e confirmada ao crente pelo testemunho interno do Espírito Santo. Calvino tratava o texto bíblico tanto reverentemente quanto criticamente (por exemplo, At 7.14 e Gn 46.27). A capacidade de reconhecer a Bíblia como a Palavra de Deus não depende de provas, mas é um dom gratuito do próprio Deus.
        Calvino afirma a unidade entre a Palavra e o Espírito contra dois erros opostos. Os católicos subestimavam o papel da iluminação ao subordinarem as Escrituras à igreja. Calvino, como Lutero, afirmou que as Escrituras foram o ventre do qual nasceu a igreja, e não vice-versa. Por outro lado, os “fanáticos” concentravam-se de tal modo no Espírito que subestimavam a Palavra escrita.
        Toda a teologia de Calvino foi elaborada dentro destes parâmetros: a objetividade da revelação divina nas Escrituras e o testemunho iluminador do Espírito Santo no crente. A verdadeira teologia deve manter-se dentro dos limites da revelação.
        A função principal das Escrituras é a nossa edificação, capacitando-nos a ver o que de outro modo seria impossível. Seu propósito é revelar o que precisamos saber sobre Deus e nós mesmos.

4. O DEUS QUE AGE

4.1. O Deus trino

        Calvino deu mais atenção à doutrina da trindade que Lutero ou Zuínglio. Ele basicamente sustentou a doutrina da igreja antiga de que Deus é uma única essência que subsiste em três pessoas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo. Ele advertiu quanto a especulações sobre o mistério da essência divina e recusou-se a torcer a Escrituras para sustentar essa doutrina.
        Como no caso de Atanásio, no quarto século, a Trindade era fundamental por ser um testemunho da divindade de Jesus Cristo e, assim, da certeza da salvação realizada por ele. Somente alguém que era verdadeiramente Deus poderia redimir os que estavam totalmente perdidos.
        A fé na trindade é confessada na liturgia do batismo e na doxologia, não para definir plenamente o ser de Deus, mas somente para permanecer em silêncio diante do mistério da sua presença (Agostinho).

4.2. Criação
        A seguir, ainda no Livro I das Institutas, Calvino descreve a atividade de Deus em relação ao mundo na criação e na providência. O mundo criado é o “deslumbrante teatro” da glória de Deus. Depois que as pessoas são iluminadas pelo Espírito Santo e têm o auxílio dos “óculos” das Escrituras, a criação pode fornecer um conhecimento de Deus mais lúcido e edificante (teologia da natureza), fortalecendo a fé dos crentes.
        Deus criou o mundo a partir do nada (ex nihilo). O mundo foi criado para a glória de Deus, mas também para o benefício da humanidade. Os crentes devem contemplar a bondade de Deus em sua criação de tal modo que seus próprios corações sejam despertados para o louvor (Jonathan Edwards).

4.3. Providência
        Calvino reflete acerca do caráter precário e incerto da vida humana sobre a terra. Sua doutrina da providência não reflete um otimismo piedoso, mas resulta de uma avaliação realista das vicissitudes da vida e da ansiedade que elas produzem.
        Ele critica duas concepções errôneas: o fatalismo e o deísmo. A doutrina estóica do destino pressupõe que todos os eventos são governados pela necessidade da natureza. Calvino pondera que, na concepção cristã, o “regente e governador de todas as coisas” não é uma força impessoal, mas o Criador pessoal do universo, que em sua sabedoria decretou desde a eternidade o que iria fazer e agora em seu poder realiza o que decretou.
        Ele também combate a idéia de que Deus fez o mundo no princípio, mas depois o deixou entregue a si mesmo. Como mostram as Escrituras, Deus está contínua e eficazmente envolvido no governo da sua criação. Assim, a providência é uma espécie de continuação do processo criador, tanto nos grandes como nos pequenos eventos.
        Essa ênfase na atividade imediata e direta de Deus no mundo leva Calvino a rejeitar a teoria traducianista da origem da alma, a idéia de que a alma é transmitida de geração a geração pelo processo da procriação humana (Lutero). Calvino cria que, toda vez que uma criança é gerada, Deus cria uma nova alma ex nihilo.
        Apesar de sua interação direta com o mundo, Deus também pode usar causas secundárias para realizar a sua vontade. Ele pode até mesmo usar instrumentos maus (como Satanás e suas hostes), transformando o mal em bem.
        Se Deus decreta cada evento, onde fica a responsabilidade humana? Calvino responde que a providência de Deus não atua de modo a negar ou tornar desnecessário o esforço humano. As próprias ações humanas são um dos meios pelos quais Deus realiza os seus propósitos.
        O governo divino de todos os eventos não torna Deus o autor do pecado? Assim como Lutero, Calvino distingue entre a vontade revelada e a vontade oculta de Deus. Ao enviar Cristo para a cruz, a Bíblia diz que Herodes e Pilatos estavam cumprindo o que Deus havia determinado (Atos 4.27-28). Ao mesmo tempo, eles também estavam violando a vontade expressa de Deus revelada em sua lei.
        Vez após vez Calvino apela ao mistério e incompreensibilidade das ações de Deus. O problema do mal é tão difícil precisamente porque não podemos entender como as tragédias da vida contribuem para a maior glória de Deus.
        A fé verdadeira percebe que, por trás dos sofrimentos, que em si mesmos são maus, existe um Pai de justiça, sabedoria e amor que prometeu nunca abandonar-nos. Nessas questões, não se pode submeter Deus aos padrões humanos de julgamento.

5. O CRISTO QUE SALVA

5.1. A doutrina do pecado

        A partir do Livro II das Institutas, Calvino trata de Deus, o Redentor. Calvino geralmente é visto como o autor de uma concepção totalmente pessimista do ser humano. Todavia, o reformador sempre mostrou profunda apreciação pelas realizações humanas na ciência, literatura, arte e outras áreas, atribuindo-as à graça comum de Deus. A imagem de Deus no ser humano está terrivelmente deformada, mas não inteiramente apagada.
        Todavia, as muitas virtudes e dons da natureza humana nada valem para alcançar a justificação. Para entender plenamente a natureza humana, é preciso olhar para Jesus Cristo, o verdadeiro ser humano.
        Calvino define o pecado original como “uma depravação e corrupção hereditária de nossa natureza, difundida em todas as partes da alma, que primeiramente nos torna sujeitos à ira de Deus e depois também produz em nós aquelas obras que a Escritura chama de ‘obras da carne’” (Inst., 2.1.8).
        Vale destacar dois aspectos: (a) não podemos simplesmente culpar Adão por nossa condição pecaminosa; o pecado de Adão é também o nosso pecado; (b) o pecado original não se limita a uma dimensão da pessoa humana, mas permeia toda a vida e a personalidade.
        Pecado não é somente o ato, mas a inclinação da própria natureza humana em sua condição decaída. Cometemos pecados porque somos pecadores. A essência do pecado de Adão, que se repete em diferentes graus nos seus descendentes, é orgulho, desobediência, incredulidade e ingratidão. Somente a consciência da nossa total pecaminosidade pode preparar-nos para ouvir as boas novas da libertação do pecado através de Jesus Cristo.

5.2. A pessoa de Cristo
        A teologia de Calvino é profundamente cristocêntrica e o tema que domina a sua cristologia não é o conhecimento de Cristo em sua essência, mas em seu papel salvífico como Mediador. A revelação de Deus em Cristo é o supremo exemplo da sua acomodação à capacidade humana. Precisamos de um Mediador tanto por sermos pecadores quanto por sermos criaturas.
        Cristo como Mediador é verdadeiro Deus e verdadeiro homem (1 Tm 3.16). Ele é o Verbo eterno de Deus gerado do Pai antes de todas as eras, que, em sua encarnação, ocultou a sua divindade sob o “véu” da sua carne.
        Uma formulação peculiar da cristologia de Calvino é o chamado extra Calvinisticum: a noção de que o Filho de Deus tinha uma existência “também fora da carne”. VerInstitutas 2.13.4.

5.3. A obra de Cristo
        Mais importante que conhecer a essência de Cristo é conhecer com que propósito ele foi enviado pelo Pai. Calvino explicou a obra de Cristo em conexão com o seu tríplice ofício de Profeta, Rei e Sacerdote, todos os quais eram ungidos no Antigo Testamento, prefigurando o Messias.
        Como Profeta, ele foi ungido pelo Espírito para ser arauto e testemunha da graça de Deus, fazendo-o através do seu ministério de ensino e pregação. Na qualidade de Rei, Cristo atua como o vice-regente do Pai no governo do mundo; um dia sua vitória e senhorio se manifestarão plenamente. Em seu ofício sacerdotal, ele foi um Mediador puro e imaculado que aplacou a ira de Deus e fez perfeita satisfação pelos pecados humanos.
        Calvino observa que Deus poderia resgatar os seres humanos de outra maneira, mas quis fazê-lo através do seu Filho. Ele dá ênfase não tanto à justiça de Deus, mas à sua ira e amor, ambas ilustradas na obra de Cristo. Não somente a morte de Cristo tem efeito redentor, mas toda a sua vida, ensinos, milagres e sua contínua intercessão nos céus, à destra do Pai. A obra expiatória de Cristo tem também um aspecto subjetivo, pelo qual somos chamados a uma vida de obediência.

6. A VIDA NO ESPÍRITO
        Toda a obra de Calvino pode ser interpretada como um esforço de formular uma espiritualidade autêntica, isto é, uma vida no Espírito, baseada na Palavra de Deus revelada, vivida no contexto da igreja e direcionada para o louvor e a glória de Deus. O Livro 3 das Institutas é um belo tratado sobre a vida cristã no qual Calvino elabora uma grande quantidade de tópicos como a obra do Espírito Santo, fé e regeneração, arrependimento, negação de si mesmo, justificação, santificação, oração, eleição e ressurreição. Três deles merecem destaque especial:

6.1. Fé
        Calvino começa por rejeitar certas noções equivocadas: “fé histórica” (mero assentimento intelectual), “fé implícita” (submissão ao juízo coletivo da igreja), “fé informe” (estágio preliminar da fé). O que é então a fé? “Um conhecimento firme e certo da benevolência de Deus para conosco, fundada na verdade da promessa dada gratuitamente em Cristo, revelada a nossas mentes e selada em nossos corações pelo Espírito Santo” (Institutas 3.2.7).
        Antes de ser uma capacidade inata do ser humano, é um dom sobrenatural do Espírito Santo. É também uma resposta humana genuína pela qual os eleitos ingressam na sua nova vida em Cristo. Entre os efeitos da fé estão a regeneração, o arrependimento e o perdão dos pecados.
        O arrependimento é “a verdadeira conversão de nossa vida a Deus, procedente de um sincero e real temor de Deus, que consiste da mortificação de nossa carne e do velho homem e da vivificação do espírito” (Inst. 3.3.5). É um processo contínuo que deve estender-se por toda a vida.
        Embora possa ser assaltada por dúvidas, a fé verdadeira por fim triunfará sobre todas as dificuldades. Os descrentes podem, quando muito, ter uma “fé temporária”. Já os crentes verdadeiros, ainda que cometam pecados, mesmo pecados graves, são sustentados pelo Espírito e finalmente não irão perder-se.

6.2. Oração
        O mais longo capítulo das Institutas é dedicado à oração, que Calvino chamou “o principal exercício da fé e o meio pelo qual recebemos diariamente os benefícios de Deus”. Porém, se toda a vida cristã, desde o primeiro passo até a perseverança final, é um dom de Deus, por que orar? A resposta é que os fiéis não oram para informar ou convencer Deus de alguma coisa, mas para expressarem sua fé, confiança e dependência dele.
        Calvino propôs quatro regras para a oração: (a) reverência: evitar toda ostentação ou arrogância; (b) contrição: deve proceder de um coração arrependido; (c) humildade: ter em mente a glória de Deus; (d) confiança: firme esperança de que a oração será respondida. Isso se aplica tanto à oração individual quanto às orações coletivas da igreja. A oração é a parte principal do culto a Deus (Is 56.7; Mt 21.13).

6.3. Predestinação
        Calvino usou a palavra “predestinação” pela primeira vez na edição de 1539 dasInstitutas. A sua doutrina nessa área não tem nada de original: nos pontos essenciais ele não difere de Lutero, Zuínglio ou Bucer, os quais recorreram todos a Agostinho. A inovação de Calvino consistiu no lugar em que colocou a doutrina em seu sistema teológico, não em conexão com a doutrina da providência (Livro I), mas no final do Livro III, que trata da aplicação da obra da redenção.
        Calvino não começou com a predestinação e depois foi para a expiação, regeneração, justificação e outras doutrinas. Ele a introduziu como um problema resultante da pregação do evangelho. Por que, quando o evangelho é proclamado, alguns respondem e outros não? Nessa diversidade, ele afirmou, torna-se manifesta a maravilhosa profundidade do juízo de Deus. Trata-se, pois, de uma preocupação pastoral.
        A doutrina de Calvino sobre a predestinação pode ser resumida em três termos: (a) absoluta: não é condicionada por quaisquer circunstâncias finitas, mas repousa exclusivamente na vontade imutável de Deus; (b) particular: aplica-se a indivíduos e não a grupos de pessoas; Cristo não morreu por todos indiscriminadamente, mas somente pelos eleitos; (c) dupla: Deus em sua misericórdia ordenou alguns indivíduos para a vida eterna e em sua justiça ordenou outros para a condenação eterna.
        Calvino cria que essa doutrina era claramente encontrada nas Escrituras e não queria dizer nada sobre a predestinação que não pudesse ser tomado da Bíblia. Ele também não permitiu que a doutrina fosse usada como desculpa para não proclamar o evangelho a todos. De fato, na história da igreja, alguns dos maiores evangelistas e missionários foram firmes defensores dessa doutrina (George Whitefield, Jonathan Edwards).

7. OS MEIOS EXTERNOS DE GRAÇA
        
No Livro IV das Institutas, Calvino trata dos seguintes temas: a igreja verdadeira e seus oficiais, o desvios do romanismo, os sacramentos, o governo civil. Calvino também aborda essas questões nos seus comentários das Epístolas Pastorais.

7.1. Pressupostos
        Calvino, mais que os outros reformadores, preocupou-se com a relação entre a igreja invisível e a igreja como uma instituição que pode ser reconhecida como verdadeira através de certas marcas distintivas. As marcas que constituem a igreja visível são, acima de tudo, a correta pregação da Palavra e a fiel ministração dos sacramentos. Embora não tenha incluído a disciplina eclesiástica entre as marcas da igreja, ele certamente a valorizava.
        A preocupação de Calvino com a ordem e a forma da congregação resultou de sua ênfase na santificação como o processo e o alvo da vida cristã. Em contraste com a ênfase luterana unilateral na justificação, Calvino deu precedência à santificação. O contexto da santificação é a igreja visível, na qual os eleitos participam dos benefícios de Cristo não como indivíduos isolados, mas como membros de um corpo. Assim, a igreja visível torna-se uma “comunidade santa”.
        A eclesiologia de Calvino tem dois pólos em contínua tensão: a eleição divina (igreja invisível) e a congregação local (igreja visível). Por isso, a igreja ao mesmo tempo enfrenta perigos mortais e é preservada por Deus. A igreja visível é um corpo misto composto de trigo e joio; já a igreja invisível compõe-se de todos os eleitos (inclusive anjos, fiéis do Velho Testamento e eleitos que se encontram fora da igreja verdadeira).

7.2. A igreja como mãe e escola
        A igreja é a mãe de todos os crentes porque os leva ao novo nascimento através da Palavra de Deus, bem como os educa e alimenta durante toda a sua vida. Esse caráter maternal da igreja é visto de modo especial na sua ministração dos sacramentos.
        O batismo é o ingresso do crente na igreja e o símbolo de sua união com Cristo. Ele visa confirmar a fé dos eleitos, mas deve ser aplicado a todos os que estão na igreja visível. Quanto à Santa Ceia, Calvino adotou uma posição intermediária entre Lutero e Zuínglio. Embora Cristo esteja nos céus à destra do Pai, a ceia não é mero símbolo, mas um meio de “verdadeira participação” em Cristo (Inst. 4.17.10-11).
        A igreja é também uma escola que instrui seus alunos no caminho da santidade. Essa instrução perdura por toda a vida e também se dirige aos alunos rebeldes, na esperança de que um dia sejam transformados.

7.3. Ordem e ofício
        Calvino encontrou nas Escrituras o quádruplo ofício de pastor, mestre, presbítero e diácono, que é a base da forma de governo incorporada nas Ordenanças Eclesiásticas.
        Ele cria que os ofícios de profeta, apóstolo e evangelista eram temporários e cessaram no final da era apostólica. Dentre os ofícios que permaneceram, o de pastor é o mais honroso e o mais necessário para a ordem e o bem-estar da igreja. Depois da aceitação de doutrinas puras, a nomeação de pastores é a coisa mais importante para a edificação espiritual da igreja.
        Para ser escolhido, o aspirante deve preparar-se e depois ser comissionado publicamente segundo a ordem prescrita pela igreja. Em Genebra, esse processo incluía a companhia de pastores, o conselho municipal e a igreja. A ordenação é um rito solene de instalação no ofício pastoral.
        As funções dos pastores são ensino, pregação, governo e disciplina. Os pastores devem ter um profundo conhecimento das Escrituras para que possam instruir corretamente as suas igrejas. Sua pregação deve revelar conhecimento e habilidade para ensinar. A pregação visa a edificação da igreja e deve ser prática e perspicaz. A função disciplinar do pastor requer que a sua própria conduta esteja acima de qualquer suspeita.

7.4. A igreja e o mundo
        Calvino rejeitou o conceito anabatista de que a igreja devia isolar-se da sociedade e cultura circundantes. A relação entre a igreja e o mundo inclui tanto tensão quanto interação. O seu entendimento do governo de Deus e da soberania de Cristo sobre toda a criação, e não somente sobre a igreja, levou-o a defender a participação na sociedade.
        O governo de Cristo deve manifestar-se idealmente através de governantes piedosos. Os magistrados deviam manter a ordem cívica e a uniformidade religiosa. Todavia, igreja e estado têm esferas separadas e autônomas de atuação. Os cristãos devem obedecer até mesmos os governantes que oprimem a igreja, orando por seu bem-estar, porque foram instituídos por Deus.

Fonte:
George, Timothy. Teologia dos reformadores. São Paulo: Edições Vida Nova, 1994.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

A PRÁTICA DO JEJUM - PARTE 1



TEXTO (MATEUS 6.16-18)
16. Quando jejuardes, não vos mostreis contristados como os hipócritas; porque desfiguram o rosto com o fim de parecer aos homens que jejuam. Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa. 17. Tu, porém, quando jejuardes, unge a cabeça e lava o rosto, 18. com o fim de não parecer aos homens que jejuas, e sim ao teu Pai, em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.

·         INTRODUÇÃO
Meus amados irmãos, quando nos propomos a estudar um assunto como o jejum, devemos nos precaver contra inúmeros mal-entendidos. Especificamente, existem dois extremos quanto ao jejum. De um lado, estão aqueles que afirmam que o jejum é uma obrigação para o crente em nossos dias. Afirma-se que, “crente que não jejua não é consagrado, não recebe o batismo com o Espírito Santo” e outras coisas mais. Nessa fileira estão os nossos irmãos pentecostais e carismáticos. Interessantemente, eles estão aliados ao catolicismo romano, que enxerga o jejum como algo imprescindível e obrigatório para o cristão. Por exemplo, no catolicismo, o jejum é algo ordenado como possuindo várias funções: 1) como forma de preparação para a pessoa receber a comunhão: “A fim de se prepararem convenientemente para receber esse sacramento, os fiéis observarão o jejumprescrito em sua Igreja” (§1387)[i]; 2) como forma do sacramento da penitência (§1434,1438)[ii]; e 3) como mandamento expresso, possuindo caráter obrigatório: “O quarto mandamento (‘Jejuar e abster-se de carne, conforme manda a Santa Mãe Igreja’) determina os tempos de ascese e penitência que nos preparam para as festas litúrgicas; contribuem para nos fazer adquirir o domínio sobre nossos instintos e a liberdade de coração” (§2043).[iii] Eu creio que foi exatamente contra esse tipo de postura[iv] que o apóstolo Paulo se pronunciou em 1 Timóteo 4.1-3: “Ora, o Espírito afirma expressamente que, nos últimos tempos, alguns apostatarão da fé, por obedecerem a espíritos enganadores e a ensinos de demônios, pela hipocrisia dos que falam mentiras e que têm cauterizada a própria consciência, que proíbem o casamento e exigem abstinência de alimentos que Deus criou para serem recebidos, com ações de graças, pelos fiéis e por quantos conhecem plenamente a verdade”.

Um agravante entre muitos evangélicos, é que eles acabam tratando o jejum como uma espécie de “varinha de condão”, uma espécie de poder mágico[v], uma moeda de troca para barganhar com Deus favores pessoais. Por exemplo, uma pessoa que jejua porque deseja receber uma promoção no emprego, passar em um concurso ou em um vestibular. Muitos disfarçam o uso equivocado do jejum sob o rótulo “resposta de oração”. A exortação é a seguinte: “Se você quer uma bênção, então jejue!”. Meus irmãos, isso é perigoso, pois “no momento em que começarmos a dizer: ‘Porquanto faço isto, obtenho aquilo’, isso significará que teremos começado a controlar a bênção divina. Isso é um insulto a Deus, violando a grande doutrina de Sua soberania final”.[vi] Isso está errado, pois a pessoa acha que a eficácia está no jejum! “Quando jejuamos, não devemos crer no jejum, e sim em Deus”.[vii]Precisamos ter muita cautela com aqueles que dizem que o jejum é algo obrigatório para o discípulo de Jesus Cristo ou que o tratam como um ritual mágico.

O outro extremo fica por conta da maioria dos protestantes que, negligenciam quase que inteiramente o jejum. Existem algumas razões para tal negligência. Em reação ao catolicismo e ao pentecostalismo, os protestantes acabam negligenciando a prática do jejum. Pensam que, porque o jejum não é expressamente ordenado nas Sagradas Escrituras, então, não se deve jejuar de forma alguma. Martyn Lloyd-Jones afirma que, “tendemos a cair no extremo oposto, deixando inteiramente de lado o jejum, em nossas considerações e em nossa prática diária”.[viii] Outra razão para a atual negligência do jejum é o fato da grande indiferença que as pessoas, mesmo os evangélicos têm para com Deus e os assuntos espirituais. Porque as pessoas têm Deus como algo insignificante, como um acessório para suas vidas, tudo aquilo que está associado a Ele, bem como com o cultivo de uma vida piedosa perde a sua importância diante das pessoas. Um homem chamado Edward Farrell afirmou o seguinte sobre isso: “Quase em toda parte e em todos os tempos, o jejum sempre ocupou um lugar de grande destaque, visto que ele se encontra estreitamente relacionado com o profundo senso religioso. Talvez isso explique a negligência do jejum em nosso tempo. Quando o significado de Deus diminui, o jejum desaparece”.[ix] Um pastor chamado Richard Foster afirmou que em um período de quase cem anos nem mesmo um único livro sobre jejum foi escrito.[x]

Há ainda uma terceira razão para a atual negligência em relação ao jejum. A nossa superexposição à ideia de que temos necessidade de várias refeições durante o dia. Foster fala sobre esse problema:
A propaganda com a qual somos alimentados continuamente convence-nos de que, se não tivermos três refeições fartas todos os dias, com diversos petiscos nos intervalos, ficaremos à beira da inanição. Somando-se a isso a crença popular de que é uma virtude satisfazer cada um dos apetites humanos, o jejum tornou-se obsoleto.[xi]

Contrariamente a tudo isso, queridos irmãos, a Bíblia apresenta o jejum como algo benéfico e também como algo válido para os cristãos dos dias de hoje. Faríamos bem em examinar o que ela ensina sobre essa disciplina maravilhosa. A Bíblia apresenta uma longa lista de personagens que praticaram o jejum: Moisés, Davi, Elias, Ester, Daniel, a profetisa Ana (Lucas 2.36,37), João Batista, Paulo, Jesus[xii] e os cristãos da igreja primitiva. Igualmente, muitos dos cristãos notáveis da história da Igreja jejuavam e davam testemunho de seu valor. Entre eles, estão Agostinho, bispo de Hipona[xiii], Martinho Lutero[xiv], João Calvino[xv], John Knox, John Wesley[xvi], Jonathan Edwards[xvii], David Brainerd[xviii], Charles Spurgeon[xix] e Ashbel Green Simonton.

·         EXPOSIÇÃO
I – DEFINIÇÃO DE JEJUM
Muitas vezes, o jejum é definido meramente como abstenção de comida, ou de comida e bebida, por um período específico de tempo. “No jejum, nós nos abstemos de alimentos e, não raro, também de líquidos”.[xxiv] Richard Foster define o jejum como “abstenção de comida por motivos espirituais”.[xxv]

Acontece que jejum não diz respeito apenas a comida e a bebida. A questão não é o alimento em si. De acordo com John Piper, “a questão engloba qualquer coisa e todas as coisas que poderiam ser um substituto para Deus”.[xxvi] Lloyd-Jones diz que o jejum “não deve confinar-se à questão de alimentos sólidos e líquidos; pelo contrário, o jejum, na realidade, deveria incluir a abstinência de qualquer coisa, legítima em si mesma, tendo-se em vista algum propósito espiritual especial”.[xxvii]Isso significa, meus amados irmãos, que mesmo coisas boas, muitas vezes podem servir como obstáculo para o cultivo de uma intimidade maior com o Senhor; podem acabar ocupando o lugar de Deus.

O jejum envolve também abstenção programada de coisas como sexo entre pessoas casadas (1 Coríntios 7.5). Muitos comentaristas afirmam que a disposição de Abraão em sacrificar o seu filho Isaque se configura como uma espécie de jejum, pois Abraão “preferiu a Deus à vida de seu filho”.[xxviii] Com isso em mente, podemos ter a convicção de que, jejum não é o confisco do mal, mas sim o confisco daquilo que é bom, o confisco do bem.

O nosso foco está, especificamente, no jejum como abstenção de comida e, em alguns casos, de bebida, durante um determinado período. No entanto, extrairemos alguns princípios úteis para toda e qualquer abstenção que desejarmos fazer por amor a Deus.

II – O ENSINO BÍBLICO SOBRE O JEJUM
2.1. No Antigo Testamento
2.1.1. A Psicologia do jejum
Algo interessante nas páginas do Antigo Testamento é a psicologia do jejum, isto é, as emoções que o acompanhavam. Por exemplo, alguns casos são apresentados em que o jejum foi praticado não como expressão de adoração a Deus, mas motivado por sentimentos e emoções violentas, como inveja, ira e aborrecimento: “E assim o fazia ele de ano em ano; e, todas as vezes que Ana subia à Casa do SENHOR, a outra a irritava; pelo que chorava e não comia” (1 Samuel 1.7); “Pelo que Jônatas, todo encolerizado, se levantou da mesa e, neste segundo dia da Festa da Lua Nova, não comeu pão, pois ficara muito sentido por causa de Davi, a quem seu pai havia ultrajado” (1 Samuel 20.34); “Então, Acabe veio desgostoso e indignado para sua casa, por causa da palavra que Nabote, o jezreelita, lhe falara, quando disse: Não te darei a herança de meus pais. E deitou-se na sua cama, voltou o rosto e não comeu pão” (1 Reis 21.4). No entanto, meus irmãos, esse tipo de abstinência de comida não tem nada de religioso.

Frequentemente, o jejum aparece nas Escrituras como uma expressão de aflição espiritual, como se a pessoa que o pratica quisesse dizer á deidade: “‘Eu sou penitente; eu não sou superior e poderoso. Você não precisa afligir-me mais’”.[xxix] O sentimento do que jejua é como um apelo à piedade da deidade. Davi é representativo aqui: “Respondeu ele: Vivendo ainda a criança, jejuei e chorei, porque dizia: Quem sabe se o SENHOR se compadecerá de mim, e continuará viva a criança?”(2 Samuel 12.22).

2.1.2. As ocasiões e condições do jejum
É preciso agora, queridos irmãos, compreendermos as ocasiões em que o jejum era praticado no Antigo Testamento. O jejum foi ordenado por Deus para ser praticado obrigatoriamente uma vez por ano. Isso deveria ocorrer no Dia da Expiação: “Isso vos será por estatuto perpétuo: no sétimo mês, aos dez dias do mês, afligireis a vossa alma e nenhuma obra fareis, nem o natural nem o estrangeiro que peregrina entre vós. Porque, naquele dia, se fará expiação por vós, para purificar-vos; e sereis purificados de todos os vossos pecados perante o SENHOR” (Levítico 16.29,30; cf. 23.27-32; Números 29.7; Jeremias 36.6). Apesar nem o verbo nem o substantivo para jejum e abstinência ocorram aqui, alguém “afligir a alma” significa abster-se de alimento. Vejam como o salmista Davi disse que afligia a sua alma: “Quanto a mim, porém, estando eles enfermos, as minhas vestes eram pano de saco; eu afligia a minha alma com jejum e em oração me reclinava sobre o peito”(Salmo 35.13). Vejam também a pergunta dos israelitas descrentes acerca do efeito do jejum praticado por eles: “Por que jejuamos nós, e tu não atentas para isso? Por que afligimos a nossa alma, e tu não o levas em conta?” (Isaías 58.3a; cf. v. 5). Deve ser entendido que a pergunta deles não possuía a humildade existente naqueles que desejam realmente aprender. Como afirma Raymond C. Ortlund Jr., “era apenas uma forma de descarregar sua frustração com Deus. Eles achavam que Deus estava sendo injusto”.[xxx] De qualquer forma, percebam como “afligir a alma” sempre está relacionado com a prática do jejum.

Aqui o jejum é praticado como parte de uma grande contrição e tristeza por causa do pecado cometido contra o Senhor. O grande problema é que essa prática deveria ser espontânea, e não algo mecânico. Os judeus perverteram o propósito de Deus quanto ao jejum praticado no Dia da Expiação. Os israelitas começaram a jejuar meramente para conseguir obter o favor de Deus quanto a interesses pessoais: “... Eis que, no dia em que jejuais, cuidais dos vossos próprios interesses e exigis que se faça todo o vosso trabalho. Eis que jejuais para contendas e rixas e para ferirdes com punho iníquo; jejuando assim como hoje, não se fará ouvir a vossa voz no alto” (Isaías 58.3b,4). Por exemplo, na época de Jesus, os fariseus jejuavam duas vezes por semana (segundas e quintas-feiras). E eles faziam isso mecanicamente. A sua intenção era fazer mais do que a Lei mandava, para ver se conseguiam ter justiça própria de sobra. Entretanto, Jesus contou uma parábola sobre dois homens: “Um disse: ‘eu jejuo duas vezes por semana’. O outro disse: ‘Ó Deus, sê propício a mim, pecador’. Somente um desceu para sua casa justificado (Lucas 18.12-14)”.[xxxi] Os fariseus jejuavam não para afligirem suas almas por causa dos seus pecados, mas apenas para serem vistos pelos homens.

Nesse contexto de confissão de pecados, o jejum deveria funcionar apenas como um sinal visível de uma realidade invisível; um sinal exterior de algo que acontecia no interior do jejuador. Isso fica claro no livro do profeta Joel: “Ainda assim, agora mesmo, diz o SENHOR: Convertei-vos a mim de todo o vosso coração; e isso com jejuns. Com choro e com pranto. Rasgai o vosso coração, e não as vossas vestes, e convertei-vos ao SENHOR, vosso Deus, porque ele é misericordioso, e compassivo, e tardio em irar-se, e grande em benignidade, e se arrepende do mal” (Joel 2.12,13).

Extraordinariamente, o jejum também era praticado em tempos de profunda aflição. Algumas vezes esse jejum era público, outras vezes era privado. As ocasiões eram as seguintes: 1) Guerra ou ameaça de guerra (Juízes 20.26; 1 Samuel 7.6); 2) Doenças (2 Samuel 12.16ss; Salmo 35.13); 3) Luto (1 Samuel 31.13; 2 Samuel 1.12); e 4) Perigo iminente (Esdras 8.21; Ester 4.3,16).

Acrescenta-se a isso, o fato de que, o jejum sempre era acompanhado de oração. Nunca ninguém jejuava sem orar durante o período em que se abstinha dos alimentos.

2.2. No Novo Testamento
2.2.1. A prática do jejum no Novo Testamento
Quando voltamos os nossos olhos para o que o Novo Testamento afirma sobre a prática do jejum, a única diferença que podemos encontrar entre ele e o Antigo Testamento, é que no Novo nós não encontramos nenhum mandamento específico para dias de jejum. Não existe nenhuma promulgação de dias de jejum no Novo Testamento.

Isso quer dizer, então, que, a partir do Novo Testamento o jejum deixa de ser algo válido? De maneira nenhuma! O Novo Testamento toma o jejum como algo praticado sempre pelos discípulos de Jesus Cristo. Nós podemos encontrar vários exemplos de pessoas jejuando no Novo Testamento: 1) Jesus: “A seguir, foi Jesus levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. E, depois de jejuar quarenta dias e quarenta noites, teve fome” (Mateus 4.1,2); 2) Paulo[xxxii] e Barnabé: “E, promovendo-lhes, em cada igreja, a eleição de presbíteros, depois de orar com jejuns, os encomendaram ao Senhor em quem haviam crido” (Atos 14.23); 3) a Igreja reunida: Havia na igreja de Antioquia profetas e mestres: Barnabé, Simeão, por sobrenome Níger, Lúcio de Cirene, Manaém, colaço de Herodes, o tetrarca, e Saulo. E, servindo eles ao Senhor e jejuando, disse o Espírito Santo: Separai-me, agora, Barnabé e Saulo para a obra a que os tenho chamado. Então, jejuando, e orando, e impondo sobre eles as mãos, os despediram (Atos 13.1-3); 4) a profetisa Ana: “... Esta não deixava o templo, mas adorava noite e dia em jejuns e orações” (Lucas 2.37).

Contudo, as palavras mais importante a respeito da continuidade do jejum para os dias posteriores ao Novo Testamento, foram pronunciadas pelo próprio Senhor Jesus Cristo, em Mateus 9.14,15: “Vieram, depois, os discípulos de João e lhe perguntaram: Por que jejuamos nós, e os fariseus muitas vezes, e teus discípulos não jejuam? Respondeu-lhes Jesus: Podem, acaso, estar tristes os convidados para o casamento, enquanto o noivo está com eles? Dias virão, contudo, em que lhes será tirado o noivo, e nesses dias hão de jejuar”. Estas palavras de Jesus sobre o jejum são extraordinárias. Elas deixam claro que o jejum é algo esperado dos discípulos de Cristo nos dias de hoje, após a sua ascensão aos céus. Richard Foster afirma que, “talvez essa seja a afirmação mais importante feita no Novo Testamento sobre ser ou não o jejum um dever para os cristãos de hoje”.[xxxiii]

2.2.2. Os usos do jejum no Novo Testamento
Na nova administração do Pacto três usos do jejum recebem destaque: 1) para a piedade pessoal (Mateus 6.16-18); 2) para a eleição, ordenação e instalação da liderança da Igreja (Atos 14.23); e 3) para a ardente expectativa da volta de Cristo (Mateus 9.14,15).

Creio que este último seja o ponto mais importante do ensino do jejum no Novo Testamento. John Piper define o jejum como “uma expressão física do desejo ardente do coração pela volta de Jesus [...] Jesus relaciona o jejum cristão com o nosso anelo pelo retorno do Noivo”.[xxxiv] A Igreja é como uma noiva que, ao sentir grandes saudades do seu noivo, deixa até de comer, entregando-se, assim, à saudade e ao desejo. Esse deve ser o nosso maior motivador para nos aplicarmos ao jejum privado. Jesus assume que o jejum está intimamente relacionado com o desejo que os seus discípulos trazem em seu coração acerca da sua volta. Então, nós temos um indexador do nosso desejo pelo retorno do nosso Noivo. O jejum é uma constante em nossas vidas? Se sim, isso significa que o nosso coração tem uma ardente saudade do nosso Noivo. Por outro lado, se não damos o mínimo valor para a prática do jejum, isso, tristemente, indica que o nosso coração não está abrasado de saudades do nosso Noivo, o Senhor Jesus Cristo. Mais uma vez, a afirmação de John Piper chega a ser dolorosa: “A quase universal ausência de jejum pela volta do Senhor é uma testemunha de nossa satisfação com a presença do mundo e a ausência do Senhor. Isso não deveria ser assim”.[xxxv] O significado do jejum é um coração faminto por Deus!

A prática do jejum coletivo na Igreja neotestamentária diz respeito a assuntos de grande importância, como a escolha de sua liderança. Isso se depreende da passagem de Atos 14.23. É necessário proclamar dias de jejum solene quando o futuro da Igreja estiver em jogo. Jejuns públicos e coletivos não devem ser marcados sem nenhum propósito. Nesse ponto, a Confissão de Fé de Westminster é clara:
A leitura das Escrituras, com santo e piedoso temor; a sã pregação e o consciencioso ouvir da Palavra, em obediência a Deus, com entendimento, fé e reverência; o cântico de salmos com graça no coração; e bem assim a devida administração e o digno recebimento dos sacramentos instituídos por Cristo – são todos partes do culto religioso ordinário oferecido a Deus, além dos juramentos e votos, jejuns solenes e ações de graças em ocasiões especiais, que devem, em seus diversos tempos e estações, ser usados de uma forma santa e religiosa.[xxxvi]

A conclusão à qual nós podemos chegar é que, a Escritura promove sim a prática do jejum, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. A grande pergunta à qual nos voltamos agora é a seguinte: COMO JEJUAR? O que devemos fazer e o que devemos evitar na prática cristã do jejum? Voltemos agora ao nosso texto inicial: Mateus 6.16-18.


[i] CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA: Edição revisada de acordo com o texto oficial em Latim, (São Paulo: Loyola, 2002), 384.

[ii] Ibid, 395,396.

[iii] Ibid, 537.

[iv] Isso porque o erro combatido pelo apóstolo Paulo, em 1 Timóteo 4.3, era uma forma embrionária de Gnosticismo, que adotava o dualismo persa. Tal forma de gnosticismo é denominada por Hendriksen como “gnosticismo asceta”. Cf. William Hendriksen, Comentário do Novo Testamento: 1 Timóteo, 2 Timóteo e Tito, (São Paulo: Cultura Cristã, 2001), 184. Calvino relaciona alguns grupos heréticos, como por exemplo, os encratistas, cujo nome é derivado do grego “continência”, ostacianistas, os cataristasMontano e finalmente os maniqueus, “que sentiam extrema aversão por carne como alimento e pelo matrimônio, e condenavam ambos como sendo profanos”. Cf. João Calvino, Comentário à Sagrada Escritura: As Pastorais, (São Paulo: Paracletos, 1998), 109.

[v] Encaixa-se aqui o grande herege Charles Finney. Ele usava o jejum como uma forma de garantir o recebimento de poder do alto. Sempre que percebia que o poder divino o abandonava, ele separava um dia para jejum e oração, de maneira que o poder era, então, renovado. Eis o seu testemunho: “Eu saía e fazia visitas e achava que não tinha causado nenhuma impressão salvadora. Eu exortava e orava com o mesmo resultado. Eu então separava um dia para jejum e oração em particular, temendo que esse poder me abandonasse, e inquiria ansiosamente qual era a razão dessa aparente vacuidade. Depois de me humilhar e chorar por socorro, o poder retornava sobre mim com todo o seu frescor. Essa tem sido a experiência da minha vida”. Citado em John Piper, Fome por Deus, (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 109.

[vi] D. Martyn Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, (São José dos Campos: Fiel, 1999), 327.

[vii] Luciano Subirá, Compreendendo o Jejum Biblicamente, 3. Artigo eletrônico.

[viii] D. Martyn Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, 322.

[ix] Citado em John Piper, Fome por Deus, 13.

[x] Richard Foster, Celebração da Disciplina, (São Paulo: Vida, 2007), 83.

[xi] Ibid, 84.

[xii] Deve ser observado que Jesus jejuou por quarenta dias, quando da ocasião da sua tentação no deserto. No entanto, ele e seus discípulos foram criticados por não jejuarem (Mateus 9.14,15; Marcos 2.18,19; Lucas 5.33-35), como observa J. P. Lewis in Merrill C. Tenney (Org.), Enciclopédia da Bíblia Cultura Cristã, Vol. 3, (São Paulo: Cultura Cristã, 2008), 399. Isso parece ser um claro indicativo de que, para Jesus, embora o jejum seja esperado dos cristãos, ele não deve se constituir numa norma fixa, mas sim algo feito com extrema liberdade.

[xiii] Nas suas famosas Confissões, Santo Agostinho fala um pouco sobre a sua prática do jejum ao contrapô-la com o desejo por comer e beber: “Mas por ora esta necessidade me é grata, e luto contra essa delícia, para que não me domine; é uma guerra cotidiana que sustento com jejum, reduzindo meu corpo à escravidão”. Cf. Santo Agostinho, Confissões, (São Paulo: Martin Claret, 2002), 238.

[xiv] John Piper cita um sermão pregado pelo Reformador alemão, baseado em Mateus 4.1, em 1524: “A respeito do jejum eu digo o seguinte: é correto jejuar frequentemente a fim de subjugar e controlar o corpo [...] Mas a pessoa não deve jejuar com vistas a merecer alguma coisa por isso como por boas obras”. John Piper, Fome por Deus, 199.

[xv] Na edição de 1541 das Institutas, Calvino entende que o jejum é uma prática associada ao arrependimento. Ele escreve o seguinte sobre a aplicação atual do jejum: “Os pastores atuais não fariam mal se, toda vez que vissem aproximar-se alguma calamidade, de guerra, de fome ou peste, fizessem ver a seu povo que seria bom orar ao Senhor com choro e jejum; desde que se fixassem no principal, que é quebrantar ou romper os corações e não a roupa. Pois é certo que nem sempre o jejum vem com o arrependimento, mas essa prática convém particularmente aos que querem declarar que reconhecem que merecem a ira de Deus e, contudo, pedem o seu perdão por sua clemência”. Cf. João Calvino, As Institutas: Edição especial com notas para estudo e pesquisa, Vol. 2, V.10, (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 136. Na edição de 1559, Calvino dedica um longo trecho à consideração acerca da prática do jejum. Eis um trecho: “Em suma, pode-se admitir assim: sempre que surgem controvérsias acerca da religião, a qual precisa ser decidida ou em um sínodo ou em um tribunal eclesiástico, sempre que se trata de eleger um ministro, enfim, sempre que se discute alguma coisa difícil e de grande importância; por outro lado, quando aparecem os juízos da ira do Senhor, como pestilência, guerra e fome, esta é uma santa e salutar ordenança em todos os séculos: que os pastores exortem o povo ao jejum público e orações extraordinárias”. Cf. João Calvino, As Institutas ou Tratado da Religião Cristã, Livro 4, XII, 14, (São Paulo: Cultura Cristã, 2003), 234. Edição eletrônica.

[xvi] John Wesley, num sermão intitulado Causes of Inefficacy of Christianity, disse uma frase que se tornou famosa: “O homem que nunca jejua não está em situação diferente, com relação à sua jornada para o céu, do homem que nunca ora”. Citado em John Piper, Fome por Deus, 205.

[xvii] Jonathan Edwards era incisivo quanto ao jejum ser praticado por ministros do Evangelho. Ele escreveu o seguinte em Thoughts on the Revival of Religion in New England: “Nós que somos ministros, não só temos necessidade de um pouco da verdadeira experiência da influência salvífica do Espírito de Deus em nossos corações, mas nós necessitamos de uma porção dobrada em um tempo como este. Precisamos ser cheios de luz como um vidro colocado sob o sol; e, com respeito ao amor e zelo, precisamos ser como os anjos que são chamas de fogo. O estado dos tempos requer uma plenitude do Espírito divino nos ministros, e não deveríamos dar a nós mesmos nenhum descanso até que obtivéssemos isso. E, para fazer isto, eu penso que os ministros, acima de todas as pessoas, deveriam estar muito mais em oração e jejum, em secreto e uns com os outros. Parece-me que seria favorável às atuais circunstâncias, que os ministros de uma vizinhança se encontrassem frequentemente, e gastando dias em jejuns e oração fervorosa entre eles, buscando suprimentos extraordinários da graça divina dos céus”. Cf. Jonathan Edwards, The Works of Jonathan Edwards, Vol. 1, (Grand Rapids, MI: Christian Classics Ethereal Library, 2002), 1458,1459.Extraído do site http://www.ccel.org/ccel/edwards/works1.html. Minha tradução.

[xviii] Existem alguns registros no diário de David Brainerd que mostram como era constante a sua prática do jejum. No dia 30 de junho de 1742 ele escreveu: “Passei o dia sozinho no bosque, em jejum e oração; experimentei os mais temíveis conflitos de alma”. Em 20 de abril de 1743, Brainerd escreveu: “Separei este dia para jejum e oração, inclinando minha alma diante de Deus com o fim de receber mais de sua graça, sobretudo para que toda a minha aflição espiritual e inquietude interior fossem santificadas para a minha alma”. No dia 10 de novembro do mesmo ano temos mais um registro: “Passei este dia sozinho, em jejum e oração”. Cf. Jonathan Edwards, A Vida de David Brainerd entre os Índios, (São José dos Campos: Fiel, 2005), 34,50,60.

[xix] Eis o testemunho de Spurgeon: “Os nossos períodos de jejum e oração no Tabernáculo têm sido realmente dias sublimes; nunca o portão dos céus estivera tão largamente aberto; nunca os nossos corações estiveram tão perto da glória celestial”. Citado em Edward McKendree. Bounds,Poder Através da Oração, (São Paulo: Batista Regular, s/d), 12. Edição eletrônica extraída do sitehttp://www.monergismo.com.

[xxiv] Dallas Willard, O Espírito das Disciplinas, (Rio de Janeiro: Danprewan, 2003), 189.

[xxv] Richard Foster, Celebração da Disciplina, 85.

[xxvi] John Piper, Fome por Deus, 18.

[xxvii] D. Martyn Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, 325.

[xxviii] John Piper, Fome por Deus, 19.

[xxix] J. P. Lewis in Merrill C. Tenney (Org.), Enciclopédia da Bíblia Cultura Cristã, 396.

[xxx] Raymond C. Ortlund Jr., Isaías: Deus Salva Pecadores, (Rio de Janeiro: CPAD, 2009), 487.

[xxxi] John Piper, Fome por Deus, 9.

[xxxii] Paulo ainda afirma o seguinte sobre a sua prática de jejum: “Pelo contrário, em tudo recomendamo-nos a nós mesmos como ministros de Deus: na muita paciência, nas aflições, nas privações, nas angústias, nos açoites, nas prisões, nos tumultos, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns” (2 Coríntios 6.4,5); “em trabalhos e fadigas, em vigílias, muitas vezes; em fome e sede, em jejuns, muitas vezes; em frio e nudez” (2 Coríntios 11.27). Esta última referência, possivelmente, se trate de algo não religioso, mas sim de caráter circunstancial, devido aos sofrimentos impostos sobre Paulo.

[xxxiii] Richard Foster, Celebração da Disciplina, 90.

[xxxiv] John Piper, Fome por Deus, 91.

[xxxv] Ibid, 93.

[xxxvi] A. A. Hodge, Confissão de Fé Westminster Comentada por A. A. Hodge, (São Paulo: Os Puritanos, 1999), 377.